Por que o CNJ não deve acabar com o Justiça Aberta

No mês em que o CNJ completa 10 anos de instalação, duas questões ameaçam o direito fundamental de acesso à informação e empanam o brilho das comemorações: a extinção do sistema Justiça Aberta e a indefinição quanto à regulamentação da Lei de Acesso à Informação (LAI), no âmbito do Poder Judiciário.

O Justiça Aberta foi criado em 2007 pela Corregedoria Nacional de Justiça, como medida de prevenção à corrupção, controle jurisdicional e transparência. Embora, ao longo dos anos, o sistema tenha-se constituído em valiosa fonte de informação para diversas pesquisas e levantamento de dados, ele não foi delineado com essa finalidade.

Desde a sua criação, o sistema Justiça Aberta tem sido utilizado pela Corregedoria Nacional de Justiça como instrumento essencial aos procedimentos correcionais. Isso engloba o controle de produtividade dos magistrados de 1º e 2º graus e das serventias judiciais e extrajudiciais.

Diferentemente das estatísticas produzidas a partir do sistema Justiça em Números, que foi formulado para propiciar uma radiografia do Judiciário brasileiro, o Justiça Aberta foi concebido para o controle. Por essa razão, o sistema é gerido pela Corregedoria Nacional de Justiça e não pelo Departamento de Pesquisas Judiciárias do CNJ.

Todavia, ambos os sistemas de informação não são liberalidades do CNJ, existem por ordem constitucional (art. 103-B, § 4, inc. VI, da CF/88) e regulação regimental. O inc. XXI do art. 8º do regimento interno do CNJ define que compete ao Corregedor Nacional de Justiça manter banco de dados atualizados sobre os serviços judiciais e extrajudiciais, inclusive com o acompanhamento da respectiva produtividade, visando ao diagnóstico e à adoção de providências para a efetividade fiscalizatória e correcional.

Como o controle do Poder Judiciário não é atribuição exclusiva de corregedores, o sistema Justiça Aberta propiciava o controle social em um nível antes inexistente, possibilitando o acesso a informações atualizadas sobre cada juízo e cada juiz brasileiro. Por essa porta, era possível saber, por exemplo, o nome do juiz, o total de decisões que foram proferidas no mês, o número de suspeições e impedimentos declarados, o total de audiências remarcadas, o número de autos conclusos há mais de 100 dias, dentre outras informações.

É certo que essas informações continuam sendo utilizadas pelos corregedores dos tribunais em nível local, mas nem todos os tribunais disponibilizam-nas ao público e, ainda que todos o fizessem, a veiculação padronizada e nacional desses dados é mandamento constitucional.

Além do controle em nível jurisdicional, sem o Justiça Aberta não teria sido possível formular o sistema de inspeções, que, em 2010, desencadeou inúmeras ações correcionais em relação ao espaço mais obscuro dentro da câmara escura, que ainda é o Judiciário brasileiro: os cartórios.

As informações do sistema Justiça Aberta foram essenciais para a atuação do CNJ em relação ao controle e ao combate à corrupção nos serviços extrajudiciais do país. Os dados dos serviços e ofícios que reconhecem, atestam e certificam atos particulares e públicos no Brasil só puderam ser conhecidos nacionalmente graças a esse sistema. É ele que nos informa que há 13.567 cartórios extrajudiciais no Brasil. Em poucos cliques, é possível acessar o ranking dos cartórios brasileiros por remuneração e saber que o mais rentável do Brasil é o 9º Ofício de Registro de Imóveis do Município do Rio de Janeiro, que informa ter arrecadado R$ 48.084.504,25 no último semestre informado. (Clique aqui para conhecer as informações ainda disponíveis).

A suspensão desse sistema também irá dificultar ou inviabilizar relevantes políticas adotadas pelo CNJ. Um exemplo é a emissão gratuita do registro de nascimento pela maternidade, por meio de sistema online. Tal programa integrou esforço nacional para erradicar o sub-registro de nascimento, regulamentado pelo Provimento n. 13 da Corregedoria Nacional de Justiça. O Justiça Aberta é utilizado para o registro da unidade de saúde participante, a localização do cartório e, nos casos em que a criança não tenha a paternidade reconhecida, o envio da informação a um juiz, que faculta à mãe informar o nome e o endereço do suposto pai, a fim de que a responsabilidade imputada possa ser averiguada e confirmada.

Por que então suspender referido sistema nos 10 anos do CNJ? Porque alguns juízes reclamam. Reclamam dos atos cotidianos de alimentação do sistema e muito mais da publicidade da sua produtividade. A atualização das informações no sistema requer disponibilidade de tempo. No âmbito da unidade jurisdicional, o trabalho do fornecimento mensal de dados é grande, existem erros de preenchimento e os usos do sistema nem sempre são informados aos magistrados. De toda sorte, qual esforço o magistrado brasileiro quer fazer em nome da transparência de seu próprio trabalho?

Idealmente, para reduzir tempo e aumentar a confiabilidade dos dados, as informações deveriam ser extraídas automaticamente dos sistemas processuais, não apenas para o Justiça Aberta, mas também para o Justiça em Números. Essa extração ainda não parece possível, embora tenha sido criada a Central Nacional de Informações Processuais e Extraprocessuais do CNJ1 e adquiridos R$ 68 milhões em equipamentos de TI, para a integração dos sistemas processuais2. Até que esta se torne realidade, o Justiça Aberta não pode ser extinto.

Em relação à regulamentação da LAI pelo CNJ, de novo, nos perguntamos, por que o CNJ adia a aprovação de uma resolução exaustivamente discutida em comissão criada com essa finalidade e que aguarda aprovação plenária há mais de nove meses? Quais são os dados que o Poder Judiciário não quer revelar?

A LAI estabelece o CNJ como última instância administrativa e órgão responsável por centralizar as demandas de acesso à informação dirigidas ao Poder Judiciário (art. 19, § 2º).

Assim, a persistir esse vácuo regulamentar, o direito constitucional de acesso à informação estará prejudicado em um dos poderes da república brasileira.

Da mesma forma que os demais agentes políticos e públicos, na execução das suas atribuições, os magistrados geram informações que devem ser disponibilizadas aos cidadãos para o aperfeiçoamento dos mecanismos de controle social e accountability, este entendido como ética, responsabilidade social, imputabilidade, prestação de contas de seus administradores e integrantes às instâncias controladoras e aos cidadãos.

Em um momento que o CNJ parece se afastar de sua função constitucional de garantir um sistema judiciário funcional e transparente, aproximando-se das atribuições de órgão estratégico apenas para magistrados e não para os jurisdicionados, a omissão do plenário surge como obstáculos à transparência e ao acesso à informação. No mesmo sentido, ao extinguir o Justiça Aberta, o CNJ não elimina apenas uma fonte de pesquisa, ele enfraquece o sistema de prevenção à corrupção e fragiliza políticas de aprimoramento do Judiciário dele dependentes. A prevalecer a decisão da Corregedoria Nacional de Justiça, tanto a produtividade dos juízes quanto a arrecadação das serventias extrajudiciais não mais serão de conhecimento público.

O Judiciário brasileiro parece se movimentar na contramão do mundo. Em setembro de 2015, a Assembleia da ONU aprovará os novos objetivos de desenvolvimento sustentável. O acesso à informação foi uma das recomendações do Painel de Alto Nível do Secretário-Geral das Nações Unidas sobre Sustentabilidade Global. Certamente, o tema será incorporado à agenda de desenvolvimento pós-2015, assim como o acesso à Justiça, que é um dos 17 objetivos do evento.

Com a aprovação dessa agenda, todos os países membros das Nações Unidas irão concentrar esforços, nos próximos 15 anos, para desenvolver indicadores e sistemas capazes de mensurar o acesso à justiça, à informação e os níveis de transparência. Os novos objetivos de desenvolvimento sustentável são um marco ético mundial a demonstrarem que, sem transparência e informação, não é possível haver justiça.

1 PELUSO lança sistema que integrará processos do Judiciário. Site do Supremo Tribunal Federal. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=204929>. Acesso em 17/6/2015.

2 MP investiga licitação feita pelo conselho. Estadão. Disponível em: <http://politica.estadao.com.br/noticias/eleicoes,mp-vai-investigar-licitacao-feita-pelo-conselho,841894>. Acesso em 17/6/2015.

1 Artigo publicado pelo Jota em 29/06/2015. Disponível em: http://jota.info/por-que-o-cnj-nao-deve-acabar-com-o-justica-aberta. Acesso em 20/07/2015

2 Professora de Direito Constitucional da UnB. Ex-Diretora Executiva do Departamento de Pesquisas Judiciárias do CNJ.

3 Diretora da InnovaGestão – Consultoria em Informação. Ex-Diretora Executiva do Departamento de Pesquisas Judiciárias do CNJ.